quarta-feira, 21 de abril de 2010

- O cálice da morte -


Hoje acordei desejando morrer, mas como executar tão árdua tarefa?
Por que morrer é algo tão sofrido, difícil e incompreendido?
Retirei-me para as montanhas, é esse o local onde os grandes homens caminham quando querem estar próximo daquilo que não se compreende para tentar compreender. Mas como entender de algo que não se vê? Como se vê aquilo que está no escuro? No escuro, o que há alem de sombras? Mas na realidade nem sombras existem na escuridão. A escuridão, as trevas, é em si mesma, quando se põem em si, totalmente plena, absoluta, guardadora de mistérios.
Então, se nas montanhas estamos mais próximos de contemplar aquilo que é misterioso, e a escuridão é guardiã dos mistérios e a morte é o maior mistério humano, será então possível compreender a morte em meio à escuridão de uma montanha e assim conseguir morrer?
Ao pé da montanha há um ermitão cego que carrega consigo uma vela apagada na mão direita. O que significa essa vela? Pergunto – me. Será ele maluco?
Ao perceber minha presença pronuncia algumas palavras com uma voz serena dizendo:
- A morte é a mais bela de todas as criaturas. A morte traz consigo a fonte causadora do viver e do vir- a – ser. A morte contempla o ser. Ao se deparar com a morte é impossível não se apaixonar e não desejá-la. Sua voz é o combate, é o sangue que se derrama a cada momento.
Dita essas palavras o ermitão deitou – se ao chão e dormiu desejando a eternidade.
Terrível escalada, terríveis trilhas, terrível escuridão. Pelo menos já me encontro nas trevas da escuridão, a morte deve estar me espreitando nesse momento, deve estar ao redor de meus ouvidos sussurrando suas canções que penetram em minha mente silenciosamente, num silêncio ensurdecedor que devora meu espírito e faz minha alma cantar.
Sinto que meus pés estão ficando molhados, prossigo mais adiante e a escuridão que dominava minha vista agora se torna um pouco mais cinza, possibilitando – me enxergar um pouco mais, observo a água a qual estou pisando, ergo minha vista, um pouco mais adiante, percebo que ali há uma nascente.
Pelo menos “matarei a sede” pensei eu sem perceber as palavras que surgiram nessa frase.
Ao entrar no lago formado pela nascente, um cálice emergiu diante de mim, aproximei – me dele para tocá-lo, desejava olhar em seu interior, utiliza – lo para matar minha sede. Foi quando escutei uma voz feminina dizer:
- Nem todos que estão diante desse cálice estão prontos para morrer, e aquele que tomar desse cálice sem nobreza suficiente para morrer contemplará a face sem rosto da morte. Quem é você caminhante?
- Sou aquele que veio beber do cálice da morte e oferta-lo a todos aqueles que desejarem morrer. Respondi direcionando minha vista àquela que possui belíssima voz, e pude ver uma belíssima mulher vestida de trajes negros da cor da noite, de cabelos obscuros, de lábios obscuros, de um olhar obscuro e misterioso, toda a sua alma estava velada ao meu olhar, permanecia toda no mistério.
- Quem és tu moça?
- O ato de morrer só pode ocorrer mediante a morte. Como queres morrer sem ter conhecido a morte? Aqui estou, pode contemplar a minha face.
Pude então tocar em teu rosto, a face oculta da morte, que traz beleza, que traz vida, mistério na obscuridade, ela é toda obscuridade, toda segredo.
Alguns dizem que o beijo da morte faz morrer, mas é necessário morrer para que se possa renascer o novo a partir do antigo. Tomei - o nas mãos, e derramei em minha boca um líquido escuro - esverdeado e amargo, o sabor da morte penetrando em meu corpo é amargo, frio, rasga todo o interior do meu corpo, a mente é trincada e se transforma em areia e a partir dessa areia é erguido um novo castelo feito por mãos de criança, mas cada novo tijolo é uma nova dor, cada templo que se torna ruína é uma nova dor, cada olho libertado, cada ouvido reaberto, tudo é uma nova dor, dor latente e dilacerante, transforma a vida em pó e a faz surgir novamente de maneira diferente, com muito mais dor, com muito mais sopro, a vida possui mais vida, se possui a si mesma, apodera-se, devolve-se para si mesma por meio da morte.
E conhecendo a morte aprendi a morrer, carrego comigo agora seu cálice e oferto a todos aqueles que desejam morrer.

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