terça-feira, 14 de dezembro de 2021

- A tragédia de Medusa -


Medusa olhava o céu estrelado a noite, contava as estrelas e desenhava constelações. Gostava de admirar tal abóboda pois lhe disseram que ali vivam os deuses, cruzando o imenso espaço escuro acima da existência dos mortais. Mas esse era um dia aguardado por ela, pois os deuses banqueteariam no salão real de sua família. O dia da descida dos deuses. Uma estrela cruzou o céu, rápido como um relâmpago e logo se apagou fazendo-a se lembrar de que, quando criança, havia se apaixonado pelo seu melhor amigo que, diante de uma mesma estrela cadente, havia prometido a ela sempre proteger e cuidar.

Os deuses desciam do céu um a um, porém, das profundezas do oceano, Posseidon emergia, onipotente, forte com olhar impetuoso. Posseidon, não só deus dos mares como também dos cavalos selvagens. Posseidon, o animalesco. Sua brutalidade atraía o olhar de muitas mortais, mas também de deusas, mas também, de sua sobrinha, Atena. Atena, com todo seu aspecto intelectual e vocabulário erudito, não conseguia atrair o interesse daquele que é pura selvageria, onda devastadora. Posseidon, do contrário, quer aquilo que lhe escapa, Medusa, jovem garota, que guarda no seu coração a memória de seu amigo, é fascinada pela imagem que possui dos deuses, mas não os conhece de fato. "Os deuses estão acima da maldade e dos impulsos carnais, os deuses são bondosos e justos", pensava ela.

Posseidon, do contrário, era pura luxúria animalesca, tudo o que quer, toma para si e com Medusa não foi diferente. A moça, indiferente às suas estratégias de sedução foi agarrada pelos braços fortes do deus que a jogou no chão frio de mármore e, diante de todos os olhares, rasgou suas roupas e a violentou ali mesmo. Houve espanto, susto, indignação, comentários sob cochichos que falavam da perversão de Medusa ao seduzir um deus. Todos assistiram ao espetáculo. Envergonhada e desapontada com os deuses e com os comentários dos humanos, medusa correu para o mesmo local onde antes fitava as estrelas e desenhava constelações.

Ouviu, de repente, passos leves se aproximando, sentiu medo, mas era apenas Atena, a deusa da sabedoria. Mantiveram-se em silêncio, uma olhando a outra. O olhar de Atena, frio devido a sua racionalidade, transmitia segurança para Medusa, que deixou-se confortar. Mas a frieza, na maioria das vezes, mascara o fogo que arde nas entranhas. O fogo do ódio e da inveja. Atena, a intelectual, fria e calculista, preterida pelo deus diante de uma mortal, aplicou sua tecnologia sobre Medusa alterando seu DNA. Seus fios de cabelo se transformaram em cobras e seu rosto desfigurado em uma imagem repugnante. A pior das maldades é aquela que é feita de forma medida, racional e calculada.

O amigo de Medusa dormia em seu quarto quando acordou com a voz desesperada daquela que jurou cuidar e proteger. Saiu subitamente para encontrá-la. Ao se deparar com a figura monstruosa, pensou tratar-se de um truque, pois a sua Medusa era bela e não uma criatura horrenda. "Olhe nos meus olhos e me reconhecerás, sou eu, sua Medusa". O rapaz, desconfiado, viu que a criatura não expressava perigo, sentiu que podia confiar, aproximou-se e a encarou. "Vê, me reconhece? Sou eu, Atena fez...". Suas palavras, então, foram cortadas diante do espanto. A retina de seu amigo escureceu em um cinza cor de tempestade. Logo, todo o olho se petrificou. O rapaz não mais se moveu, como uma presa diante de uma serpente. Seus braços, pernas e pescoço foram ficando imóveis. Tentou gritar diante da dor da paralisia, mas suas cordas vocais já haviam se transformado em pedra.

Medusa tocou o rosto daquilo que agora era uma mera estátua, sem coração, sem sangue correndo nas veias. Suas mãos eram frias, o calor de outrora se extinguiu. Medusa agora é só desespero, vontade de morrer, navio naufragado em um mar de lágrimas. "Assim são os deuses e também suas criaturas, os homens", pensou Medusa. A maldade está para além da inteligência. A inteligência e a brutalidade, pares aparentemente opostos que são apenas instrumentos do terror.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

- Marinheiro, como você aprendeu a nadar dessa maneira? -


 

- Nossa, você nada muito bem, Marinheiro. Como aprendeu a nadar dessa maneira?

 - Na verdade, aprendi a balançar de acordo com as ondas do mar. Porém, o maior aprendizado da arte de nadar veio quando o navio tombou. Tive que usar todos os meus recursos para não afogar. Quando voltei a navegar novamente, sereno e tranquilo em mar calmo, mas, também, me adaptando à tempestades, ouvi, iludido pela vontade de viver, o canto da sereia. Tentei me aproximar, a sereia, porém, não se movia de sua pedra. Mas, estava cada vais mais atraído por aquela melodia, estava disposto a me atirar no mar, a desviar a rota se fosse possível e, quando me dei conta, o estava fazendo. Então, peguei a mim mesmo pela gola da camisa, "eu" diante de "si mesmo", o "grande" e o "pequeno homem" que tentava retornar, olhei-me nos olhos, e bati não com força, mas com toda moralidade possível, na face do meu "eu" e disse, "toma vergonha nessa cara!", "esqueceu de ti novamente!". Nesse momento, senti vergonha de mim mesmo. Aquilo que é pequeno, fraco e molenga, a decadência sempre retorna e, nesses momentos, é preciso chamar a si mesmo o respeito e a reverência por si, por quem se é, para não ser ingrato para consigo e para com o mar. O que importa, para o marinheiro, é o mar e seu navio.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

- Primavera -



A memória vem, constantemente, como um maremoto destruindo uma cidade. Assim como há escombros espalhados, meu corpo se encontra, com pedaços de alma e coração em cantos dispersos. Morrer é doloroso, mas, experimentar a ressurreição compensa toda a dor e nos faz se reconciliar com o passado.

Sou aquilo que sou, pois vivências vivem em mim inocentemente. Ver a própria morte a partir dessa perspectiva nos faz agradecer ao despedaçamento e dissolução de si.

O messias, após sua morte por suplício, perdoou e agradeceu aos seus carrascos. Bendito o carrasco que nos mata. Morrendo, a vida virá a florescer, a primavera mostra-se em um novo sorriso só depois que o inverno acaba.

Sou uma criança experimentando o mundo, na palma da mão.

sábado, 18 de setembro de 2021

- Despedaçamento e ressurreição -


Estranha sensação, o rosto desenhado na areia do mar tal como as palavras escritas apagam-se com o vento que sopra e tudo leva. A memória, assim, se esvai e o que sobra é apenas uma indiferença, um aprendizado e nada a menos.

Li o futuro na palma da mão, na superfície das cartas em quatro cantos do mundo e, em cada canto, cantou a mesma canção. Saber do futuro é uma maldição, pois angústia e ansiedade te devoram dia a dia. Assim, o desejo quer aquilo que não pode.

O desejo é a falta ou a saudade daquilo que nunca esteve presente.

Bruno, o despedaçado no ventre da mãe por Zeus. Bruno, o sacrificado e crucificado. Bruno, o que se afoga na água que inunda toda a cidade.

Bruno, o três vezes ressuscitado!

Vim dos mortos para caminhar uma nova vida nesta terra. Um novo espírito, em um corpo envelhecido.

Amém!

terça-feira, 14 de setembro de 2021

- Elogio à suspeita -


Hoje, a aurora finalmente se mostrou. O sol emergiu desmoronando toda a escuridão que me impedia de ver. Afastou também os fantasmas que me amedrontavam, filhos da noite. Essa mesma noite, longa noite, encarnou-se como metal pesado e, por um longo tempo, não pude mais voar.

Asas de metal! O espírito se fortalece em cada luta para erguê-las. Olhei para o horizonte, estou só. Palavras de primavera sopram meus ouvidos, mas sempre há a suspeita. A suspeita é primordial para não se afogar, levado pelo canto das sereias. A certeza é o momento certo, mas é a suspeita que nos proporciona cautela.

Uma imagem sempre vem, com vários rostos que se alternam. Pode ser ou pode não ser. Muitas possibilidades, porém, o possível apresentado dissimula o caminho mais promissor. Sei para onde devo ir, mas com cautela, pois há, ainda, um bocado de suspeita.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

- Sobre inundações -

Às vezes não consigo esconder, de mim mesmo, a saudade que sinto.

Então, tudo se inunda até transbordar.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

- Ópio do povo e liberação do espírito -


Conversava com meu Demônio na hora mais solitária e silenciosa da noite quando, na janela do quarto, uma ninfa fantasmagórica apareceu. Ela não trouxe consigo uma carruagem tal como a que guiou Parmênides para encontrar-se com a verdade. Ao contrário, me trouxe a promessa de um futuro.

O Demônio, que revirava minha dor com seu tridente, me forçou a questionar o que era essa realidade. Será este futuro, esta ninfa, essa visão, reais? Voltando-se à janela, a ninfa havia dispersado no vazio do tempo juntamente com a visão do futuro, repousando em um "mais adiante". Assim, tudo o que há entre eu e o futuro é, absolutamente, nada, vazio. Não há uma estrada, mas apenas visão, fantasia, ilusão. Coisas as quais são impossíveis de serem agarradas.

Quando o tridente diabólico fisgou a vitalidade adoecida do espírito, percebi que um vapor expelido alimentava as fantasias mas, quando olhava para elas, o futuro e a ninfa, esquecia da dor e da enfermidade. Assim, realidade suspensa, dissimulada nas brumas de um paganismo oracular. No Demônio reina a sinceridade, por essa razão é tão odiado, pois ataca nossas convicções:

"O Médico não pode exercer sua função se não existir o doente, o padre não pode salvar almas sem o pecado. A cura é o niilismo para o médico. Assim, alimentar a dor e o sofrimento aprisionando o doente  naquilo que ele chama de liberdade é o poder e a razão de existir de uma tal medicina".