Houve um tempo em que todos os homens eram felizes. Celebravam cada instante, pois cada instante era eterno potencial de vida afirmada. Vida plena e próspera em troca do sofrimento eterno de um Titã. Todos os dias, preso a um rochedo, um abutre voa e devora suas entranhas. Todos os dias da eternidade abraça a dor pelo homem, entrega-se ao martírio e ao esquecimento. Prometeu assim sorri em meio à sua eterna dor. Os homens são felizes e sobrevivem. Roubar o fogo dos deuses necessitou de grande audácia e coragem. Assim sofre sem lamentar seu feito, feito nobre para o mais nobre de todos os mortais e imortais.
Epimeteu, porém, caminha triste por entre todos os homens, lamenta por seu irmão, mas ao mesmo tempo sente orgulho dele. Dirige-se ao mais longínquo horizonte de solidão à sombra de uma árvore. “Os homens não conhecem tal coisa e é melhor que não conheçam tais coisas”, assim pensa ao falar com seu coração que é pura dor. Lançando a dor, ao mais frio ar de inverno, percebe que seus olhos encheram – se do que pode haver de mais belo em todo o mundo. Uma mulher, belíssima, flutuando no ar com passos de dança rouba a dor do entristecido Titã. Não mais está consigo mesmo, mas agora é totalmente para aquele ser de plena beleza. Não mais pensa sobre seus pensamentos, não mais escuta a dor do coração.
Braços e abraços, juras eternas, passeios celestes no frio infernal. À noite Epimeteu observa as estrelas nos olhos dessa mulher, divina, chamada de “aquela que possui todos os dons” (Pandora). Versos assoprados ao ar voam como borboletas dançantes aos ouvidos de Pandora. Epimeteu tornou-se como sempre quis ser: feliz como todos os homens. À noite o fogo esquenta e aquece do frio e da ausência, pela manhã ilumina os pensamentos.
Certo dia Epimeteu havia saído de casa sozinho e assim permitiu que seus pensamentos e emoções voassem livres pelo ar. Enquanto isso, Pandora, em sua casa, banhava-se em aromas para tornar-se mais bela que o possível.
“Pandora.....” “Pandora.......... deixe-nos sair.........”
Palavras fantasmagóricas ecoavam em todos os aposentas em que habitava, sentiu medo, mas, ao mesmo tempo curiosidade. Levantou-se de sua banheira e cobriu-se com uma toalha para esconder sua nudez. Perseguia com passos sigilosos e silenciosos a voz que a clamava suavemente.
“Pandora................... Pandora................. aqui!!!!!!”
Percebeu então que as vozes vinham de uma belíssima caixa. Não lembrara de possuir tal caixa e nem tê-la visto antes com Epimeteu. Pensou, pensou muito esforçando-se para lembrar a origem daquela caixa. Ao buscar em sua memória sobre tal origem foi assaltada de forte tontura e uma não muito remota lembrança. Lembrara que havia ganhado tal caixa de um senhor que trajava roupas de tecido nobre. Este senhor a havia dito para abrir a caixa somente quanto estivesse muito feliz, e que pudesse ver tal sensação no rosto daquele que jurou eternamente ser dela.
Pandora então, tomada de curiosidade e persuadida pelas vozes que a chamavam, lentamente pôs-se a erguer a tampa da caixa. Nesse momento o céu e assim também todos os cômodos de sua casa tornaram – se repletos de escuridão. Um raio de luz saído da caixa iluminou seu rosto e, ao olhar dentro da caixa, viu um imenso universo, viu também inúmeros olhos a observando e sorrindo. Bocas repletas de dentes caninos em todas as posições da gengiva a agradeceram e saltaram de dentro da caixa que tinha como interior o universo. Criaturas horrendas, filhos do terror, da fúria. Pandora caiu no chão assustada e perguntou quem eles eram. Uma criatura despontou para frente das demais e respondeu a ela: “nós nos chamamos “males”, os deuses nos aprisionaram e nos selaram nessa caixa para que não viessem a ruir”.
Epimeteu punha-se em direção de sua casa e pôde perceber que as flores que havia colhido para Pandora haviam murchado, percebeu também, ao erguer os olhos e direcioná-los para o seu lar, uma imensidão de trevas que cobriam o local onde morava. Preocupou-se com Pandora e correu o mais rápido que pôde para salvá – la mesmo sem saber do quê. Ao abrir a porta, deparou-se com aquela terrível situação: criaturas demoníacas emergindo do interior de uma caixa. “Que coisa estranha?” pensou, e mesmo sem entender atirou-se sobre a caixa e a fechou.
Pandora estava estendida sobre o chão com o coração, a mente e o corpo repletos de feridas. Epimeteu odiou a si mesmo, sentiu raiva por tê-la deixado sozinha, sentiu enorme desejo de pôr fim em si mesmo, pois sentia-se fracassado e fraco. Os olhos de Pandora, que antes lhe mostravam estrelas durante a noite, agora apenas lágrimas. Ao olhar da janela de sua casa, viu que todos os homens não mais permaneciam felizes como outrora, mas sim que uma imensa “desgraça” havia afogado a todos em melancólicas águas de um mar negro.
Epimeteu sentia o coração doer, seus pensamentos eram como adagas que feriam e provocavam sangramentos em sua alma e, sempre que direcionava seu olhar para Pandora e a via sofrendo em dores e tristezas, preenchia seu espírito de rancor contra si mesmo. Mas, quando tudo parecia culminar num terrível desfecho, ouve-se uma suave voz de dentro da então fechada caixa. “Deixe-me sair, posso ajudar a vocês e a todos os humanos”. As palavras eram doces e convincentes, porém, diante de tal terror, ambos temeram erguer a tampa novamente. “Posso ajudar, conheço tais criaturas e sei como suporta-las”.
Epimeteu pensou, sabia que tudo dependia de sorte, cinqüenta por cento, sim ou não. Pandora, ele mesmo e todos os homens e mulheres do seu vilarejo padeciam em dor e sofrimento. Decidiu e assumiu o risco abrindo novamente tal caixa. Surpreendeu-se, pois a criatura que saíra do interior de tal objeto assemelhava-se a uma pequena fada e esta, com seu aspecto angelical, tornou Epimeteu simpático a ela. A criaturinha voou aos quatro cantos da terra proferindo seu nome em doces palavras “Esperança”. Algumas pessoas puseram – se de pé, mas algo em seus semblantes era estranho, seus olhares eram vazios. Punham-se de pé não para caminharem, mas sim para apenas permanecer de pé. Assim suportavam a si mesmos com suas dores, com seus males adquiridos, mas, a cada amanhecer, olhavam para o sol que se erguia no horizonte desejando que, junto com ele, viesse um alguém que os livrariam da dor. Mas o salvador nunca vinha, pessoa alguma vinha, nenhuma ajuda. Mas permaneciam esperando. “Um dia ei de ser novamente feliz”, assim dizia um camponês em meio à sua plantação de ervas amargas, e assim, incansavelmente, punha-se a trabalhar crendo num amanhã perfeito, num amanhã que traria ao amanhecer e nascer do sol, uma vida distinta daquele que vivera até o momento.
Mas Epimeteu percebeu que, a cada novo amanhecer, esse esplendor de vida nunca chegava, e cada dia as pessoas tornavam-se mais amarguradas. Olhou também para Pandora, a moça que outrora radiava beleza e sensualidade capaz de elevar seu coração e sentimentos ao mais alto cume de montanha, tornava-se, a cada dia, menos bela. Seu sorriso enferrujava-se com o tempo, mas mesmo assim ela sempre observava o nascer do sol pela janela, e à tarde, ao pôr do sol, se sentia triste, pois algo que esperava não havia chegado. Epimeteu também sofria, estava triste, mas nunca aguardou o nascer do sol, nunca aguardou nada sequer, nunca pensou em coisas futuras, mas sempre observou e pensou no instante imediato de sua vida. Essa era sua natureza. Percebeu então o quanto havia sido enganado por aquela criatura alada de nome “Esperança”, as pessoas sempre direcionavam seus olhares, pensamentos e sentimentos para um amanhã distante que nunca chega. Esperar pelo melhor, esperar pelo fim da dor, suportá-la. Mas, ela nunca vai embora, portanto mais tristeza, frustração, sentimento de vida levada pelo vento para o deserto de areia.
“Sinto dor, sinto o meu sofrimento, mas não suporto, quero transcender-me”.
Epimeteu, nesse momento, abraçou sua dor, desafiou-a para um combate, lutou consigo mesmo, e como sua natureza proporcionava a ele apenas refletir o instante imediato, superou a dor e sofrimento. A Esperança era ineficaz contra ele, nunca veio a nascer em seu coração. Com isso pode sorrir novamente e, mesmo quando a dor retornava, havia aprendido a superá-la vindo a ser novamente contente com sua existência. Mas algo ainda o angustiava e o entristecia. Pandora, a mulher que amava e que havia, num dia de tristeza e solidão, trazido cor ao seu mundo, ainda permanecia, alem de triste, esperançosa.
Queria fazer algo por ela, mas não só por ela, mas também por todos os homens da face da terra. A visão de Pandora naquele estado era lastimável, então, ouvindo ao clamor do instante imediato ao qual sempre ouviu em seus pensamentos e coração, assumiu, decidiu, pois a vida é abraçar a tarefa que se faz no momento, e este era o momento de agir por Pandora. Então, transcendeu-se a si mesmo, e Pandora, ao olhar nos olhos de Epimeteu, pôde entrar em contato direto com sua alma e escutar uma canção que trazia conhecimento e clareza, os olhos de Pandora encheram-se de brilho eterno, o encanto retornou ao seu sorriso. Dirigiu – se à janela e a fechou e, na escuridão de sua casa, reencontrou algo que sempre esteve presente “sua vida”.
Epimeteu e Pandora caminharam juntos por vários caminhos pessoais e distintos no universo de sua casa. Durante o caminho algumas pessoas os condenavam, outras os bendiziam, outros aprendiam, observando seus passos, “matar a esperança”.
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