Ham deixou-se cair do cume de uma altíssima montanha, adentrando em meio às nuvens e expandindo suas asas, visando um voo constante. Porém, uma fria neblina ofuscou suas retinas, impedindo-o de enxergar a direção que seguia. Ao tocar o chão com seus pés e recuperar a visão, percebeu - se em uma terra desconhecida, olhou para o solo e viu que este era cinzento e constituía uma longa estrada. Às margens desse caminho, erguiam-se construções imensas que tocavam o céu e, com seus ouvidos, escutou um ruído terrível que abarcava todo o lugar arranhando, ferindo e desarmonizando seu espírito.
Essa confusa realidade começou a girar ao seu redor, adquirindo cada vez maior velocidade até transformar-se em retinas gigantes que projetavam pessoas vivendo intensamento a todo o instante. Observou por um longo tempo àquelas vidas vividas de forma intensa e extrema, nenhum segundo de vida era desperdiçada, toda a vida era aproveitada de forma extrema. Percebeu então o quão miserável era sua vida, raramente experimentara, em toda a sua existência, momentos intensos. Sua vida, pequena e pobre vida, tão pouco aproveitada, tão muito cotidiana. Tal consciência de si inundou seu peito de angústia e passou a odiar e a amaldiçoar
sua própria vida. Sua mente, antes repleta de objetivos, beirava o colapso e esfarelava-se em migalhas de pobreza.
Aproximou sua face do chão cinzento e deixou suas angustiadas lágrimas correrem. Suas lágrimas transformaram-se, ao penetrar no solo, em um vírus que corrompeu todo o sistema do real que se sustentava regando as retinas que projetavam vidas intensas. Suas lágrimas, profundo e pesado mar de existência contida, fez as retinas apodrecerem e murcharem. Seu choro, de fato, era intenso, o sofrimento e a angústia são momentos de expressão intensa e extraordinária daquilo que somos. O extraordinário são picos agudos na ordinariedade da vida, tornar o extraordinário constante é tornar a diferença na mesmice. Portanto, compreendeu que sua vida ordinária possuía um valor e, para isso, necessitava ser abraçada para, em seguida rompida elevando-se ao extraordinário, retomando, novamente, a ordinariedade da vida. O que é a vida? A vida é uma constante alternância entre extraordinário e ordinário. Porém, a ordinariedade constante e eterna, seja nela mesma ou seja na captura do extraordinário, é sobrevivência, pobreza de vivências.
Ham acordou, olhou ao lado de sua rede, lá estava a cuia da qual bebera o chá. Lá fora, contemplando o oceano, o ancião indígena o aguardava.
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